"Em tempos fascistas como os nossos, tempos que se repetem historicamente, mais do que nunca, é preciso pensar sobre a morte e renovar nossa relação com a angústia. A angústia tem algo a nos ensinar: que não precisamos nos matar e que não devemos matar os outros."
Márcia Tiburi
Você já conheceu algum fascista? Tem ideia de onde eles vivem, do que se alimentam? Talvez você se surpreenda ao descobrir que pode estar ao lado deste ser mitológico naquela festinha infantil, no escritório, morando debaixo do mesmo teto ou até compartilhando a mesma cama! O fascista, para Márcia Tiburi, não é aquele ser perdido na história, aquele que desapareceu após a segunda grande guerra mas sim alguém que está mais vivo do que nunca e, pior, talvez nós mesmos possamos nos descobrir como um!
Em seu livro "Como conversar com um fascista" Márcia se propõe, através de vários ensaios, a explorar o campo do autoritarismo com suas profundas causas e consequências para tentar compreender o que é um fascista, como a cultura do autoritarismo está arraigada em nossa civilização e como reconhecê-lo tanto no outro como em nós mesmos.
Autoritarismo, ódio e a visão utilitarista
"'Tudo o que não presta' implica um rebaixamento das minorias indicadas em seu discurso ao que 'não presta'. Ora, o que 'não presta' não presta para quê? Não 'presta' para o sistema da produção e do consumo. Os 'imprestáveis' são julgados do ponto de vista da utilidade ao sistema da produção e do consumo."
Márcia Tiburi
O fascista nesta visão seria o ser autoritário, odiento, incapaz de olhar para o outro e incapaz de compreender o outro pois já possui ideias pré estabelecidas do mundo e suas supostas verdades. É justamente por já possuir suas verdades próprias, seu mundo particular, que tudo que não se encaixar em tal círculo de compreensão deve ser eliminado, eliminado como forma de negação ou até mesmo de proteção contra o outro e seus incômodos pontos de vista.
As pessoas só tem função na medida em que corroboram com a visão particular de mundo do fascista e por isso todos que o ameaçam, ou seja todos que 'não prestam', perdem qualquer função 'útil' podendo desta forma ser descartados.
"Na base de todos os manipuladores e exploradores está o princípio do fascismo como ódio aos diferentes considerados imprestáveis. Os diferentes que, como imprestáveis, perdem sua função e devem ser excluídos da sociedade."
Márcia Tiburi
Para tratar o fascismo não especificamente como vertente partidária mas como símbolo de violência, intolerância e imposição de pensamento Márcia visita os muitos aspectos que levam a isto: violência verbal e psicológica, machismo, assédio, menosprezo pelo outro, ódio interiorizado, experiências de vida, religião, consumismo (de coisas e ideias), meios de comunicação, educação precária e falta de reflexão sobre o mundo, ou seja, nosso zeitgeist. Além disso a autora revisita o passado histórico procurando identificar estas mesmas condutas violentas e autoritárias e como elas perduram até hoje, tecendo um panorama profundo e de certo modo perturbador.
"Uma educação precária e meios de comunicação manipuladores orientam mentalidades que se tornam plásticas conforme as tendências"
Márcia Tiburi
"Essa passagem da ideia pronta que recebemos da religião, do senso comum, dos meios de comunicação, para o questionamento é o segredo da inteligência humana, seja ela cognitiva, moral ou política."
Márcia Tiburi
Propaganda e consumismo de coisas e ideias
"É o caráter manipulador que opera na formação das massas. Os meios de comunicação tem um papel fundamental neste processo: a propaganda disfarçada de jornalismo não consegue esconder o seu fascismo, consegue transformar a visão de mundo fascista em valor que é louvor por quem nunca pensou em termos ético-políticos e, por isso mesmo, cai na armadilha antipolítica muitas vezes pensando que se tornou o mais politizado dos cidadão."
Márcia Tiburi
Nossos tempos exigem cada vez mais soluções rápidas, limpas e sem reflexão, ou seja consumo desenfreado. Nossos tempos eliminaram o diálogo e a auto-crítica em nome de uma velocidade tecnológica que exige respostas. Márcia mostra que quando não existe o diálogo, essencial para a democracia, a saída é adotar as ideias prontas, o lugar comum, as frases de efeito para justificar seus atos e 'pensamentos'. A propaganda é a ferramenta ideal para este cenário.
Repetição incessante, consumo de coisas e ideias. Quando mais consumirmos sem reflexão mais estaremos engalfinhados na teia das ideias autoritárias pois o autoritarismo, a violência, exigem que se pense pouco, se reflita pouco e se repita muito os discursos prontos, enlatados.
"O fazer vazio é consumo. Fugimos do pensamento analítico e crítico pelo vazio consumista da linguagem e da ação repetitiva."
Márcia Tiburi
A adoção de ideias sem reflexão, segundo Márcia Tuburi, é a porta de entrada para o autoritarismo, para o fascismo que exige justamente isto, a eliminação da crítica, do diálogo para seguir uma doutrina pré-estabelecida baseada no ódio ao outro e na impossibilidade da mudança.
"A propaganda fascista, a propaganda do ódio, prega a intolerância, afirma coisas estarrecedoras com alto teor performativo, ou seja, capaz de provocar efeitos e orientar ações."
Márcia Tiburi
A sociedade brutal e competitiva que se forma deste caldo de ignorância e falta de reflexão cobra de seus cidadãos o preço para que se possa viver em relativa paz: o consumo.
"A sociedade do assédio é esta que precisa criar mecanismos para cobrar aquilo que ela deseja como resultado. É neste contexto que a publicidade se torna instituição. Ela é responsável pelo assédio diário dos indivíduos para que desejem, queiram e comprem. Mas ela não faz por criar desejos em um sentido genuíno. A sedução não seria tão insistente. A sedução está para Don Juan assim como o estupro para a publicidade. A insistência visa o consentimento da vítima."
Márcia Tiburi
É neste ponto que temos a cisão entre a democracia e o consumo. A democracia é a possibilidade do plural, da inclusão de todos enquanto o consumo é para aqueles que possuem os meios para tal.
"Quem não produz e consome segundo os padrões do 'capital' não tem lugar. O ódio gera um não lugar, o espaço habitado pelo excluído que não é um lugar político, mas antipolítico.[...] Em uma política verdadeiramente democrática deveria haver lugar para todos"
Márcia Tiburi
E o consumo desenfreado (de coisas e ideias) vai aos poucos matando o que de melhor temos:
"Uma das regras obscuras do jogo social é ser convidado diariamente a abandonar os próprias potencialidades em nome da repetição do mesmo."
Márcia Tiburi
Dai passamos a aceitar o chamado lugar comum que exige pouca reflexão. É a novela das 8 que passa a ser considerada como referência moral de um país já que nunca paramos para pensar se existe uma única moral ou se, de outra forma, existem várias.
"O senso comum se constrói e se sustenta no 'dizem que', ou seja, na opinião geral, na opinião em voga, no pensamento comum e acrítico gerador de tendências (dominantes) seguidas por quem não se ocupa em investigar, sendo que investigar o que possa estar acontecendo nem sempre é possível por quem não adquiriu este hábito."
Márcia Tiburi
O desafio do diálogo
"Conversar com quem não pensa como eu, eis o desafio do diálogo. Sair da minha ilha ou deixar que o outro venha me visitar. Ser generoso e hospitaleiro com essa visita."
Márcia Tiburi
Talvez uma das palavras mais utilizadas por Márcia seja diálogo pois em sua perspectiva é o diálogo a ferramenta, o meio pelo qual poderemos enfrentar, compreender e talvez até sermos compreendidos pelo fascista. Seguindo esta linha de raciocínio podemos considerar que existem dois grandes desafios a serem enfrentados: um diz respeito a tentar de alguma forma dialogar, conversar com esta figura autoritária de modo minimamente civilizado
"[...]o diálogo, em todos os seus níveis, é indesejado nos sistemas autoritários. As personalidades autoritárias não o cultivam, são incapazes dele. O diálogo, por sua vez, não é apenas uma conversa, muito menos uma conversa em que se disputa um argumento. O diálogo é o contrário do discurso e só ele pode 'desmontá-lo'"
Márcia Tiburi
e o outro diz respeito a não se tornar um.
"Penso agora que, se esse experimento não alcançar sucesso na arte de conversar com um fascista, que possa nos afastar do fascismo em nossa própria autoconstrução. Se puder colaborar com isso, então o esforço teórico e prático que o engendrou não terá sido em vão"
Márcia Tiburi
O diálogo é a arma para enfrentarmos a intransigência e para criar uma sociedade mais justa.
"[...] quem é atacado nos posicionamentos discursivo e práticos do fascismo não deve contentar-se com a posição de vítima. Essa pode ser simbolicamente útil para construir direitos, mas também para destruir lutas.[...] Assumir a posição de vítima que se confunde com a posição do culpado em nossa sociedade capitalista corresponde a expor-se e, dessa forma, abrir o flanco ao massacre. Contra a posição da vítima, podemos pensar em outra posição. Chamarei aqui de postura do guerreiro sutil, aquele que assume uma espécie de 'guerrilha' cuidadosa e delicada e desafia o poder desde a sua interioridade, desde seu núcleo duro, para desmontá-lo radicalmente."
Márcia Tiburi
Conclusão
"Como conversar com um fascista" é daqueles livros que, felizmente, não é possível esgotar em um singelo artigo ou numa singela leitura (eu o li apenas duas vezes e consultei pontualmente para escrever este artigo). Isso porque, ao contrário do que o titulo possa insinuar, não é um manual prático, pragmático como muitas publicações de conteúdo para empreendedores ou auto ajuda que infestam as livrarias. Quem espera encontrar um check list dos passos a serem seguidos vai se frustrar.
Mais do que qualquer coisa ler "Como conversar com um fascista" é, no mínimo, um exercício de reflexão que poderá levá-lo a quebrar vários paradigmas, não é o tipo de livro que lemos e jogamos num canto mas sim daquele que consultamos e relemos frequentemente.
Título: Como conversar com um fascista
Autora: Márcia Tiburi
Editora: Record